0S CIGANOS: FRONTEIRAS CULTURAIS E SISTEMA
DE SAÚDE.
Mônica
Oliveira da Silva[1]
Introdução.
A
cultura dos grupos chamados “ciganos”, principalmente no que se refere à saúde,
é pouco conhecida. Uma busca nas principais bases de dados on-line (Lilacs,
Cielo, PubMed) revela que muito pouco se tem publicado neste sentido, assim
como são poucos os dados epidemiológicos ou registros das suas necessidades
assistenciais. A maioria dos trabalhos mais recentes têm tratado de desordens
genéticas.
No
Brasil, nem sequer existem dados populacionais concretos: qual a população
cigana do país, quais grupos aqui vivem e onde, se predominantemente nômades ou
sedentários, etc. E aqui cabe informar que pelo menos três grandes grupos são
chamados indistintamente ciganos: os
Rom(a), que são oriundos principalmente dos Bálcãs e Europa Central, os Calón,
da Península Ibérica, e os Sinti, presentes principalmente na Alemanha, Itália
e França, além de vários subgrupos. Esses grupos não seguem necessariamente as
mesmas tradições. A cultura descrita como “cigana” é, de modo geral, na
literatura encontrada, aquela característica dos Rom (1-3).
Entre
as principais orientações propostas pela Declaração Universal sobre Diversidade
Cultural da UNESCO (2001) encontra-se: “3-Favorecer o intercâmbio de
conhecimento e de práticas recomendáveis em matéria de pluralismo cultural com
vistas a facilitar, em sociedades diversificadas, a inclusão e a participação
de pessoas e de grupos que procedem de horizontes culturais variados”(4).
Neste
sentido, diante do óbvio desconhecimento que temos da(s) cultura(s) dos grupos
ciganos e diante dos problemas derivados deste fato que possam repercutir na
área de saúde, surgiu o interesse e a necessidade de se conhecer um pouco
melhor sobre a população cigana que procura o Hospital de Clínicas de Porto
Alegre, suas características, necessidades e dificuldades, visando a possibilidade
de melhorar a interação transcultural, fundamental em todo o processo de assistência
à saúde.
Cultura e saúde
De modo
geral é descrita uma relação estreita entre conduta moral e saúde, indivíduo e
grupo. Entre os ciganos há um sistema de regras e normas de conduta que mantêm
a força cultural e social do grupo e os separa da sociedade não-cigana. Envolve
religiosidade, tabus, rituais de passagem (nascimentos, casamentos, mortes),
entre outros costumes (5).
A
primeira e principal obrigação de um cigano é o respeito a sua família
imediata, depois estendida ao clã. Pertencer a um grupo parental é o fundamento
do reconhecimento de uma pessoa como membro de direito dentro da comunidade,
pois a organização social cigana se baseia em estrutura a partir das relações de parentesco,
fundamentada em eixos classificatórios de status: sexo e grupo etário (6).
A importância da família acentua-se numa
situação de contato misto[2]
onde está presente a agravante de abalo emocional e de necessitar da ajuda de
uma outra cultura. Este é um ponto que deve ser observado e tratado com muito
cuidado pelos profissionais de saúde
Construção cultural sobre saúde e doença
Luíza Silva comenta que os ciganos
por ela estudados têm uma “racionalidade
não-biomédica no entendimento do corpo”. Para a autora, que vê a saúde como
um importante significante cultural, os não-ciganos têm uma relação de
dependência para com a medicina que não está presente na cultura cigana: “A distância em relação a este modo de vida
é uma das facetas daquilo que consiste a exclusão cultural da população cigana”(8)
A
percepção sobre saúde e doença parece estar estreitamente relacionada com
certos fatores como:
- Boa e má sorte: certas cores,
números, comidas e muitas ações diárias
são classificadas como auspiciosas ou não. Seguindo essa linha uma pessoa
gorda, por exemplo, pode ser vista como de boa sorte e, portanto, saudável (9;10).
- Pureza e impureza (marimé).
Conceituados pelo código moral que lhes é próprio, certos tabus constantemente
relatados por pesquisadores dizem respeito ao que é “puro” e “impuro”. Esse
código classifica coisas, comportamentos, pessoas e animais como impuros,
maculados ou desonrados, definindo formatos e fronteiras do seu universo
natural e espiritual, interação social, funções judiciais e muitos outros ritos
(10-13). Costumam
ser citados como impuros: a metade inferior do corpo, mulheres no período
menstrual, período pós-parto e cadáveres (9;13;14). Nem
todo sangue é poluído. O sangue da corrente circulatória é limpo, pois é fonte
de vida e vitalidade, e a cor vermelha é associada à boa sorte e felicidade (10;12).
A
repercussão na saúde pode ser ampla. É referido, por exemplo, que por causa do
código de pureza as mulheres costumam negligenciar exames ginecológicos a menos
que seja claramente explicado que o procedimento é essencial para seu bem
estar, sendo que a gravidez não é habitualmente motivo de consulta médica.
Nesse sentido alguns
pesquisadores
observam uma precária comunicação entre profissionais da área de saúde e
mulheres Rom (9;15;16). Numa
pesquisa que envolveu 450 ciganos Calón em Souza/PB, Moonen verificou,
entretanto, que todas as gestantes entrevistadas declararam fazer o pré-natal
sem, contudo, especificarem a periodicidade (17).
Um
estado de poluição temporário ou facilmente reversível (sujeira), algumas vezes
chamado de “melalo”, estaria mais ligado ao conceito não-cigano de higiene (9).
Segundo Moonen o código de pureza não
parece ser seguido por todos os grupos
Rom e nem pelos Calón do Nordeste do Brasil (18). Sutherland afirma que “nem todos os ciganos do mundo
usam o termo “marimé” mas todos os grupos para os quais dados etnográficos
detalhados estão disponíveis têm algum termo que indica uma “condição poluída”(10). Nos
estudos sobre ciganos e sistema de saúde em Portugal, Silva et al. não cita em momento nenhum o
“marimé”(16), mas segundo informação pessoal da autora, “o código de conduta
dos ciganos de Portugal se pauta pelo valor da pureza enraizado no conceito de
'marimé' com o qual associa as atitudes face ao hospital”(19).
Os
processos de doença e cura parecem envolver, portanto, mais que simples funções
fisiológicas estando estreitamente associados ao comportamento individual, ao
comportamento social perante o grupo e ao destino. Isto inclui também atitudes
com relação aos mortos e aos espíritos dos mortos (9).
Este é
um ponto importante: uma vez que saúde /doença não é um assunto que diga
respeito apenas ao indivíduo mas a um problema social, as famílias têm a
necessidade de ficar unidas quando alguém está doente, o que, segundo
Sutherland, é um forte valor da cultura cigana (9;10).
As
fronteiras culturais podem ser tão delimitadas que é relatado para ciganos Rom
dos EUA, por exemplo, a existência de uma distinção entre doenças originárias
do mundo não cigano e aquelas que são parte exclusiva do seu próprio meio, de
tal modo que as primeiras devem ser curadas por médicos não-ciganos. Mas aquelas de
origem cigana devem ser curadas por membros da comunidade que têm o
conhecimento das práticas de cura e dos espíritos. Por acreditarem se tratar de
doenças diferentes os dois processos de cura não tendem a entrar em conflito (9;10).
Status de Saúde
Alguns
tópicos comumente citados por autores referentes ao status de saúde de
comunidades ciganas são:
- Fatores nutricionais: A dieta é rica em gorduras animais e alto consumo de sal e
açúcar , pimenta, alho, cebolas, café e
também de bebidas alcoólicas (20;21,27).
Alguns ciganos consideram a obesidade como sinônimo de poder e boa sorte
(21); também são citados altos
índices de tabagismo (20).
- Grau de escolaridade : em
geral baixo, principalmente entre as mulheres. Pode estar relacionado com o
fato de os grupos serem itinerantes ou sedentários (20);
- Imunização insuficiente: é
alto o percentual de crianças não vacinadas, bem como baixa adesão aos planos
de vacinação. A adesão a práticas de saúde preventiva também parece ser
precária. As consultas pediátricas de rotina não são cumpridas A vacinação
infantil apresenta índices bastante deficientes de continuidade (vacinação
incompleta) além de taxas significativas de ausência completa de imunização (22-24);
- Alto índice de patologias
degenerativas: aparecem mais cedo na
população cigana adulta (entre 35 e 45 anos) e com uma maior incidência que na
população majoritária (20).
- Risco Genético: A endogamia
ainda é apontada como um fenômeno comum entre os ciganos (25) e diversos
autores têm publicado sobre desordens genéticas e mal-formações congênitas,
registradas em diferentes populações ciganas.
Certo é
que as práticas e relações entre as duas culturas distintas – cigana e não-cigana - a forma como um cigano
se relaciona com seu grupo e este grupo com a nossa sociedade, têm
características que muitas vezes conflitam com as normas hospitalares e
dificultam o atendimento, gerando problemas de comunicação e compreensão.
Atendimento Médico e
Hospitalização
É
relatado que muitos ciganos só procuram hospitais diante de um sério risco de
morte por ser um lugar hostil, muito próximo a um estado de exílio de sua
própria sociedade. Há indícios que o tempo de internação seja menor que a média
geral porque a prolongada ocupação de lugares não-ciganos significa poluição (marimé) (9;13;14;16)
O
ambiente hospitalar, principalmente em se tratando de hospitais de grande porte
que atendem a populações bastante heterogêneas, é propício a contatos mistos.
Os grupos e/ou indivíduos envolvidos nestas situações podem funcionar uns aos
outros como estranhos morais[3]
(26).
Não raro
nos deparamos com relatos referindo dificuldades de entendimento entre
pacientes ciganos, seus familiares e equipe de saúde em casos de internações
hospitalares.
Goffman,
ao tratar de situações de contatos mistos envolvendo um grupo estigmatizado
socialmente, coloca que “em lugar de
retrair-se defensivamente, o indivíduo estigmatizado pode tentar estabelecer
contatos mistos mediante agressividades. Para este autor,”situações mistas como esta tendem a gerar
ansiedade, um conjunto de características que ele chama de “patologia da interação”(7).
Para
Luíza Silva, “a separação social
(habitacional, profissional e educativa no sentido de escolarizada) dos ciganos
não se limita a criar barreiras à acessibilidade e à assimilação da informação
vulgarizada de conhecimentos de medicina (...) mas determina sua desadequação, freqüentemente referida
pelos profissionais nas interações inter-culturais: insubmissão às regras
organizacionais, rebeldia face ao pressuposto de confiança nas orientações
terapêuticas, não acatamento das instruções médicas.” O resultado disto, ainda segundo a autora, é “a percepção de um comportamento ameaçador
e provocatório por parte da instituição que vem a reforçar o preconceito que
justifica o estigma e gera, do lado dos ciganos, um sentimento discriminatório”(8).
O quanto somos suscetíveis frente à
diversidade cultural e qual a nossa capacidade de promover uma dinâmica
assistencial adequada a esta diversidade é designado por Abreu de competência cultural. Para este autor,
o desenvolvimento de competências culturais é extensivo não só a todo o
processo de assistência mas abrange todas as áreas de resposta humana (33).
No caso
de internações hospitalares, um dos pontos de conflito é o fato de a família querer estar presente junto
ao parente internado, o que contraria regras de visita. Por ser um evento de
importância social, quando um parente está doente, eles vão ao hospital em
grande número e às vezes acampam nos arredores (13;14;16;).
A
importância da família já foi antes abordada e cabe ressaltar também a
importância dos mais velhos. Vivian & Dundes ressaltam que “A hierarquia familiar de idade e sexo deve ser observada e respeitada pela equipe
de saúde. Sobrepor-se à importância dos
homens mais velhos pode coibir a
cooperação da família com o tratamento. O mais velho da família pode também
servir como o interlocutor entre a
equipe e familiares. Para estes autores
“A família tem papel fundamental em prover suporte emocional e a ajudar na
situação de afastamento social. O número de familiares aumenta com o
agravamento da situação e observa-se questionamentos sobre cada detalhe do
tratamento dispensado. (29).
Também
não é raro encontrarmos indicações de que alimentação hospitalar é sistematicamente
recusada devido as regras do código de pureza (a alimentação hospitalar seria
considerada marimé).
As
técnicas invasivas do corpo – injeções vacinas e intervenções cirúrgicas – são
particularmente assustadoras, aparentemente vivenciadas como contaminadoras do
modo de vida impuro dos não-ciganos (13;16;30). Os
procedimentos cirúrgicos são muito temidos porque envolvem cortar uma pessoa e
principalmente quando anestesia geral é necessária (12;14).
Ryczac et al. menciona que os ciganos
Rom têm especial receio de procedimentos cirúrgicos que requerem anestesia
geral porque acreditam que a pessoa sob anestesia geral passa por uma “pequena
morte” e, para a família, reunir-se ao redor da pessoa que sai do efeito da
anestesia geral é especialmente importante (12) .
Contudo
há pelo menos uma situação em que a hospitalização é percebida sob outra ótica:
Os nascimentos. Entre as comunidades que seguem o código de pureza os partos
normalmente são realizados nos hospitais para evitar a contaminação da casa (9;11).
Para os
ciganos a hospitalização por qualquer motivo que não seja um parto só pode significar
no mínimo uma cirurgia, senão a morte. Essa situação também pode causar
conflitos com o sistema hospitalar, pois é relatado que, quando um indivíduo do
grupo está próximo à morte, todos os parentes são avisados por mais distantes
que estejam. Todos os parentes que puderem comparecer devem estar ao lado do
leito daquele cuja vida está próxima ao fim, tanto para mostrar solidariedade à
família quanto para obter perdão por qualquer ato prejudicial que possam ter
cometido no passado; parentes e amigos devem ficar ao redor de quem está à
beira da morte dia e noite. O doente nunca deve ser deixado sozinho, não só por
compaixão mas também por receio de provocar rancor no enfermo, e não deve
morrer em sua residência /tenda habitual (12;13;31).
Stewart refere que para os Rom o momento da morte é aquele de cessação do fluxo
sangüíneo: “em outras palavras, a atividade do dji”, termo relacionado com
djilo (coração), godji (mente), djivel (vida).
O lindra ( alma) deixa então o
corpo e então se iniciam os rituais fúnebres (32).
Segundo
Engelhardt, estranhos morais precisam resolver controvérsias por meio do desenvolvimento
de um acordo comum que ofereça
estratégias de entendimento, meios de resolução das controvérsias(26). É
importante identificar o alcance das dificuldades. Mais ainda, para Abreu é
fundamental a aceitação da diversidade e a utilização das diferenças como
estratégia de intervenção. Por exemplo, os profissionais de saúde podem se
valer do suporte familiar como ajuda durante o período de acompanhamento do
tratamento.
Assim,
Wetzel relata que o diálogo adequado por
parte dos profissionais de saúde com pacientes ciganos e seus familiares torna
suas necessidades culturais particulares mais facilmente compreensíveis (28). A
compreensão mútua gera vínculo de confiança que minimiza eventuais conflitos e
deve ajudar a aumentar a adesão aos tratamentos propostos. Os ciganos respeitam
a autoridade de seus familiares, notadamente os homens mais velhos, e são
ávidos por aprenderem sobre seus próprio tratamento e de seus parentes e têm
uma ampla rede de suporte familiar. Esses são fatores, quando observados e
respeitados, podem ser utilizados em prol do tratamento nos casos de atendimentos
hospitalares. Nesse sentido Sutherland e Wetzel sugerem que os profissionais de
saúde devem:
- Estar atentos ao fato de que
parentes mais velhos têm importante papel no processo de tomada de decisão do
paciente e, portanto, devem ser identificados, respeitados e incluídos nesse
processo.
- Estabelecer clara
comunicação, explicando o tratamento e os procedimentos pelos quais o paciente
deve passar, excluindo termos técnicos; deve-se perguntar se há algo que vá
contra seus valores culturais, suas crenças e religiosidade.
- Ler as instruções importantes,
particularmente sobre medicação ingerida. Cabe aqui observar que os diferentes
grupos ciganos falam dialetos próprios, que não envolve escrita, mas todos
entendem o idioma da população majoritária do país onde vivem ainda que alguns
sejam apenas semi-alfabetizados.
- Permitir que alguns parentes
fiquem no quarto com o paciente numa base de rotatividade e ter atenção
especial em caso de falecimento do paciente(10, 14, 28).
A
família é a base da sociedade Rom, Sinti e Calón e tudo o que envolve separação
de seus membros é evitado. A percepção da hospitalização é a de um ambiente
impuro onde sua família pode vir a ficar separada contrariando seus costumes.
Como deixa claro Fernanda Reis (Sec. Diocesano de Lisboa, 1992): “(...) Mas o
que realmente os faz sofrer é a separação dos seus: o hospital e a prisão são
pedaços da morte, pois cortam com a vida que amam, com o mundo em que se reconhecem
– o do seu povo, o da família cigana”.
A experiência do Hospital de Clínicas de
Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
De modo
informal, no Brasil são referidos os mesmos conflitos culturais durante os atendimentos
hospitalares a pacientes ciganos que encontramos descritos na literatura
estrangeira. O Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) tem sido procurado
por membros da comunidade cigana da Grande Porto Alegre, tanto em urgências e
partos quanto em seguimento de tratamentos.
Entre os anos de 2004 e 2006 foi realizado no
HCPA, um estudo com objetivo de conhecer aspectos da cultura cigana relacionada
à saúde com foco na hospitalização, a fim de prover informações a profissionais
de saúde que esclareçam eventuais conflitos culturais nesta situação de
assistência à saúde.
Delineado
para ser um estudo de grupo observacional e exploratório, com uma amostragem
por conveniência e intencional, foram incluídas duas famílias ciganas que freqüentaram o
HCPA neste período, sendo que com uma delas o contato foi significativamente
maior. Esta família foi acompanhada ao longo dos dois anos citados, durante o
seguimento de tratamento de câncer em 4 parentes próximos, dois adultos e duas
crianças. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Instituição e os principais indivíduos incluídos na pesquisa tinham
conhecimento e aceitaram participar do estudo (algumas informações foram
obtidas pela análise de prontuários e não houve contato com os pacientes; neste
caso foi assinado um termo de compromisso para uso de dados).
Ao longo deste período, além da análise de
prontuários, utilizou-se o recurso de observação aberta, participante, e se
travou um relacionamento de proximidade com membros–chave, principalmente da
família cujo acompanhamento dos tratamentos foi mais longo. Foi basicamente
através desta proximidade que foi obtida a maioria dos dados resultantes do estudo,
numa interação que serve pra espelhar a “autoridade do acordo daqueles que
decidem colaborar” (26). Geralmente as informações surgiram em
conversas informais. A tentativa de formalizar estas conversas através de entrevistas
semi-estruturadas mostrou-se menos eficaz e mesmo pessoas com as quais já havia
sido travada uma relação mais próxima sentiram-se claramente intimidadas pelo
processo formal[4]. Esta dificuldade independeu do gênero: tanto
homens como mulheres se tornavam mais “fechados” diante da formalização da entrevista.
Todos os ciganos incluídos pertenciam ao
grupo Rom (com famílias originárias do Leste Europeu) e eram nômades ou
semi-nômades. A habitação mais comum constituia-se de barracas em acampamentos
dentro das cidades, em espaços mistos (nos acampamentos residiam apenas ciganos
mas muitos não-ciganos habitavam em casas nas vizinhanças e, não raro, uma
não-cigana trabalhava em serviços domésticos para uma cigana) onde geralmente
parentes residiam próximos. A ocupação principal dos homens era venda ambulante
ou de carros (aqueles de melhor situação financeira). As mulheres trabalhavam
com leitura de sorte e vendas, ajudando os maridos. A cultura cigana é
basicamente verbal. Nenhuma das mulheres constatadas era alfabetizada[5]
e os homens apresentavam baixo nível de escolaridade. Os ciganos são bilíngües, dominando o idioma
da população majoritária e usando entre eles o idioma característico do grupo a
que pertencem (no caso, falavam o romani
ou romanês, próprio do grupo Rom).
Casamentos
são eventos importantes. Os festejos duram três dias e o assunto, bem como tudo
o que a ele se refere, foi motivo de várias conversas. Foram relatadas, por uma
cigana com a qual se travou contato mais
próximo, algumas peculiaridades neste sentido: Ainda é comum as mulheres de sua
comunidade casarem-se cedo. Este é, contudo, um traço cultural que parece estar
mudando. É dada grande importância à virgindade das moças, que traduz a honra
da família, e muito valor aos filhos. O casamento entre parentes próximos ainda
acontece, principalmente entre primos (ela própria era casada com um primo, bem
como seu irmão). Mas foi observado que o grau de parentesco é difícil de ser
identificado, uma vez que este critério parece estar mais fundamentado em laços
afetivos que consangüíneos[6].
Alguns traços culturais parecem estar enfraquecendo e um exemplo é que foram
relatados muitos casamentos mistos, entre ciganos e não-ciganas (“brasileiras”
ou “gadje”). Esta possibilidade é aberta somente aos homens. As ciganas, se
casarem com um não-cigano (“brasileiro”) não são consideradas mais como parte
do grupo, passa a ser vista como “brasileira” (“não é mais como nós”, “nossa
relação não é mais como antes, não há mais confiança”) e todos se afastam dela.
Logo, filhos de ciganos casados com “brasileiras” são considerados
ciganos. Filhos de ciganas casadas com
“brasileiros” não são considerados ciganos.
A construção cultural sobre saúde e
doença:
As duas
famílias que participaram do estudo buscaram atendimento no Hospital de
Clínicas de Porto Alegre em situações de urgência. Foram ao todo cinco
internações por câncer, quatro das quais de uma mesma família[7].
O
caráter de urgência das internações nos remete a outro fenômeno (já refereido
por outros autores): o de uma saúde preventiva precária associada a uma construção cultural sobre saúde e
doença distintas da nossa. Como refere Luíza Silva, existe entre muitos
grupos ciganos uma “racionalidade
não-biomédica no entendimento do corpo relacionada à exclusão do conhecimento científico
socialmente vulgarizado”. Para a autora, que vê a saúde como um
significante de cultura, “os não-ciganos
têm uma relação de dependência para com a medicina que não está presente na
cultura cigana. A distância em relação a este modo de vida é uma das facetas
daquilo que consiste a exclusão cultural da população cigana”(8).
A
procura por atendimento médico é quase sempre motivada por algum sintoma
mais agudo como dor incomum, sangramentos, edemas, perda de peso excessivas ou
sintomas associados (entre outros), resultando nos atendimentos em caráter de
urgência. A frase “não tem dor, está bem” é bastante comum e significa a não
necessidade de atendimento médico, mesmo em situações de patologias crônicas
que necessitam de acompanhamento periódico.
Foi
observado também pouco conhecimento de alguns aspectos da saúde preventiva. Por
exemplo, apareceu a crença de que crianças
vacinadas não deveriam ter câncer e que o “teste do pezinho” teria a função de
diagnosticar esta, e qualquer outra doença, em crianças logo no nascimento.
CONTINUA
....
[1]
Bióloga; Núcleo
Interdisciplinar de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, 2006.
Email: delunares2003@yahoo.com.br Agradecimentos: Sara:
Cigana Rom que colaborou com este trabalho, exemplo importante da
possibilidade de entendimento transcultural, compartilhando experiências e
relatando aspectos da sua cultura. Através dos vínculos de confiança formados,
vários passos neste trabalho foram possíveis. Sua contribuição foi fundamental!
(Obs.: como é garantido anonimato aos sujeitos de pesquisa, omitimos o nome
completo, apesar de tal divulgação ter sido autorizada pela mesma). José
Roberto Goldim, Biólogo, doutor
em Medicina, responsável pelo Núcleo Interdisciplinar de Bioética do Hospital
de Clínicas de Porto Alegre: por ter acreditado neste trabalho e pela
orientação, principalmente nos problemas éticos que surgiram em momentos de
conflitos inter-culturais. Frans Moonen, Antropólogo
(professor aposentado da UFPB): pelo apoio, críticas, sugestões e
hospitalidade, colocando toda a bibliografia do Núcleo de Estudos Ciganos do
Recife a minha disposição e compartilhando toda sua experiência teórica e
prática com ciganos. Ana Cristina C.
Bittelbrunn, Médica Geneticista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre,
Mestre em Psicologia Social e da Personalidade: pela força, apoio e incentivo,
além do auxílio em pesquisa qualitativa.
[2]
Goffman (p 23) designa de “contatos mistos” aqueles momentos em que
estigmatizados e não-estigmatizados (“normais”) “se acham numa mesma situação social, ou seja, quando existe uma
presença física imediata de ambos”(7)
[3]
Estranhos morais são, na concepção de Engelhardt, pessoas que não compartilham premissas ou regras morais de evidência e
inferência suficientes para resolver as controvérsias morais por meio de uma
sadia argumentação racional ou que não têm um compromisso comum com indivíduos ou instituições dotados de autoridade para
resolvê-las.
[4]
Luíza Silva refere o mesmo tipo de problema: “Ainda que, de forma geral, a realização das entrevistas não tenha
colocado problemas do ponto de vista da receptividade à entrevistadora e da
disposição de colaborar, nela se descobriram dificuldades especiais no que
respeita à comunicação entre entrevistada e entrevistadora”(8).
[5]
Para evitar o contato com a cultura não-cigana e pelo medo de que as meninas
ciganas, quando já maiores, possam se interessar pelos meninos não-ciganos
(entre os quais o namoro é proibido), as meninas e moças não são incentivadas a
freqüentar a escola. Não se percebeu em nenhum momento alguma manifestação das
mulheres deste estudo no sentido de que integrar-se a alguma aspecto da nossa
cultura - como ler e escrever – lhes
fizesse alguma falta.
CONTINUA ...