0S CIGANOS: FRONTEIRAS CULTURAIS E SISTEMA
DE SAÚDE – PARTE II
Mônica
Oliveira da Silva[1]
[1] Bióloga; Núcleo Interdisciplinar de Bioética do Hospital de Clínicas de
Porto Alegre, 2006. Email: delunares2003@yahoo.com.br
Diagnóstico/ Formulação de juízos
diagnósticos/ Representações etiológicas
Diante
da notícia de diagnósticos graves como câncer, existe, por parte da família,
principalmente entre as mulheres, grande comoção, choros e lamentos em voz
alta. De tal sorte que pode causar estranheza entre os funcionários do
hospital. Pode haver reações de
desconfiança, descrença e negação diante do diagnóstico.
Muitas
perguntas são feitas reiteradamente com relação às causas da doença em questão.
Os questionamentos mostram haver, em alguns casos, conhecimento parcial de
agentes causadores de doenças e transitam entre discursos que podemos chamar de
“ontológicos” e outros “místicos”. Ex.: Diante de um diagnóstico de câncer para
um bebê de 7 meses : “Dizem que fumo e bebida podem causar câncer mas uma
criança não fuma nem bebe” ou “ Que pecado ele tem para merecer isto? O que ele
fez?”. Este discurso místico também pode ser extensivo à família: “Nós não
roubamos, não mentimos e olha pelo que estamos passando!”, “O que fizemos para
merecer este castigo?”.
Observa-se
que o nome da patologia (câncer) nunca é pronunciado e a doença não é mencionada
às crianças (alega-se outra, como gripe).
A idéia
da hereditariedade apareceu nas duas famílias observadas quando parentes expressaram
que o motivo da doença seria o “sangue ruim” (da família com maior número de casos).
Muitas
vezes é perguntado se o câncer é contagioso e pode ter passado de pessoa para
pessoa dentro do grupo familiar. Informações sobre doenças contagiosas são
imprecisas, algumas vezes incorretas.[2]
Um
outro tipo de associação que se viu foi o fator temporal: o modo de vida
passado e presente dos ciganos ligado ao fato de as pessoas hoje adoecerem
mais. Eles ouvem falar de doenças que são veiculadas em meios de comunicação e
que antes não se ouvia falar. Também esta relação transita entre abordagens
“particulares” (Ex.: “antigamente todas as crianças ciganas usavam fraldas de
pano (...) Hoje todas usam estas descartáveis. Por isso todo mundo é mais
doente”) e outras difundidas pelos meios de comunicação (o consumo de alimentos
com agrotóxicos e de criação de animais usando muitos “químicos” foi mencionado
uma vez).
Conduta diante do tratamento proposto.
Forma de organizar/guiar o processo de doença e prestação de cuidados.
A Importância da Família
Foi
observado que em caso de internação de urgência, num primeiro momento, um
grande número de familiares costumava acompanhar o paciente ao hospital. Vários
familiares podem querer acompanhar o paciente durante os primeiros exames,
consultas e na internação em si. Outros tantos permaneciam nos arredores do
hospital, principalmente nos estacionamentos internos até o diagnóstico definitivo,
e por alguns dias ainda podem permanecer lá acampados. Esta presença maciça de
familiares pode trazer problemas, confrontando-se com regras hospitalares de
número de acompanhantes e horários de visitas.
Num
segundo momento, durante uma internação prolongada, os familiares acampados ao
redor do hospital tendem a se retirar. Nos
horários de visitas, ou mesmo fora dele, pequenos grupos podem querer visitar o
familiar internado ao mesmo tempo. O número de familiares presentes e acampados
aumenta com a gravidade da doença ou da situação do paciente,
Numa internações pediátrica
presenciada, foi atribuída ao homem mais velho da família (no caso avô) a
autoridade para as tomadas de decisão. Com o falecimento deste familiar as decisões
foram tomadas em conjunto pelos familiares mais próximos mas principalmente
pela mãe. Cabe citar Groce que descreve: “Em sociedades onde a família extensa é uma norma, pais (particularmente
pais jovens) são considerados inexperientes para tomar decisões maiores com
respeito a suas crianças, sendo consultados, para isto, parentes mais velhos. Esta autora aconselha a equipe de
saúde a incluir avós, tios e outros parentes significativos que acompanham os
pais para conferências quando um caso pediátrico for discutido(34).
Durante
a continuidade dos tratamentos, principalmente de pacientes internados, muitas
explicações costumavam ser solicitadas à equipe de saúde: nome e função de cada
medicação, o porquê deste ou daquele procedimento ser adotado, detalhe dos
procedimentos, outras possibilidades de tratamentos, resultados esperados,
entre outros. As perguntas foram muitas,
reiteradas, feitas por diferentes parentes.
A ausência de alguma explicação clara ou o não cumprimento de algum resultado
ou procedimento previsto podia ser motivo para confrontos entre família e
equipe. Ao contrário, quando as explicações e detalhes solicitados foram
fornecidos de maneira adequada (com a clareza de um linguajar acessível), colocados
inclusive os possíveis resultados esperados, formava-se um vínculo de confiança que aumenta a adesão ao tratamento e diminui
os desentendimentos. Isto exemplifica o acordo comum entre estranhos morais,
mencionado por Engelhardt, cuja autoridade moral comum está baseada na
permissão. A quebra do vínculo de
confiança por algum motivo (como um desfecho diferente do previsto e para o
qual não havia sido sugerida qualquer possibilidade) certamente pode gerar
problemas, desentendimentos e confrontos[3].
Se um vínculo de confiança é formado com um não-cigano dentro do
hospital, pode ser solicitado que este sirva como interlocutor para obter
informações mais precisas da equipe médica. Essas informações podem ser
simples, como para que dia foi marcado determinado exame de um familiar
internado. A dificuldade no diálogo pode estar na forma ou no linguajar com que
as informações são passadas.
Do mesmo modo, se as regras hospitalares são esclarecidas através de
um diálogo adequado com a família (o porquê de os horários de visitas serem
limitados, o porquê de o número de visitantes no quarto ser restrito) a
tendência é que diminuam ou acabem problemas com as possíveis tentativas de
infrações destas regras. Mas salienta-se
que nos casos mais graves e de pacientes terminais haverá sempre a tendência,
fundamentada na necessidade cultural, de um grande número de familiares
comparecer ao hospital e tentar permanecer próximo ao paciente internado.
À parte aos tratamentos derivados de consultas médicas, verificou-se
o uso de medicina alternativa, principalmente de chás medicinais[4].
Mas, paralelamente ao tratamento formal também se observou a busca de ajuda
espiritual em diferentes crenças religiosas: correntes de orações católicas e
protestantes, benzimentos, promessas, amuletos da tradição cigana ou afro. A
presença de imagens de santos católicos próxima ao leito do paciente pode ser
solicitada, bem como o uso de amuletos junto ao corpo.
A comida hospitalar era aceita, mas evitada pelos familiares
acompanhantes, que faziam suas refeições preferencialmente fora do hospital
(ainda que precárias, constituindo-se principalmente de lanches rápidos). A
justificativa foi desde o sabor desagradável da comida oferecida no hospital
até o fato de ali ser um ambiente de doença e que, portanto, a comida poderia
estar contaminada. Uma familiar vinda de outro estado para visitar um parente
internado mencionou que a maioria dos ciganos se negam a comer comida
hospitalar e que solicitavam aos médicos a permissão de parentes trazerem
comida de fora (ou que a traziam mesmo sem autorização)[5].
Apesar de este fato aparentemente ir de encontra a condutas definidas pelas regras de pureza/impureza
(marimé), em momento nenhum este termo ou
suas implicações foram mencionados espontaneamente.
Perguntas neste sentido, envolvendo questões culturais muito
particulares, podem ser vistas com desconfiança e a questão do marimé não foi verbalizada de modo
aberto ou com muita clareza para os não-ciganos. Quando questionada, uma cigana
com quem se travou uma proximidade maior deixou claro que as regras de
pureza/impureza ainda são seguidas, mas com menos restrições que as descritas
na literatura estrangeira encontrada sobre o assunto[6].
Ainda segundo esta senhora, “impuro” não seria a tradução correta para marimé, termo para o qual parece não
haver paralelo no português.
Foi observado medo de técnicas invasivas, mas principalmente de
anestesias. Para este fato não foi dada nenhuma justificativa cultural, ao
contrário do citado por outros autores (12-14,16,30).
Membros
das famílias observadas mencionaram parentes que haviam deixado de lado
tratamentos hospitalares ou mesmo que haviam tentado fugir ou se negado a
permanecer hospitalizados por tempo prolongado, mesmo diante do risco de morte.
Casos de baixa adesão foram relatados diante da ausência de possibilidade de
cura e observou-se a solicitação de altas em função de algum fato julgado
importante estar ocorrendo com algum membro da família (como morte de parente
próximo, por exemplo, que requeria a presença de todos os familiares para
despedirem-se do parente próximo à morte ou para comparecerem a seu funeral).
Observou-se descontinuidade de seguimento de tratamento preventivo de recidiva
de câncer de cólon, justificada pelo fato de o paciente estar se sentindo bem
(“ele está bem, não tem nada, não precisa
vir ao hospital”)[7].
Não foi observada descontinuidade de tratamento por motivo de viagem.
Durante
os períodos de alta, os cuidados de saúde são função das mulheres ciganas. Por isto elas sempre solicitavam que lhes
fosse bem explicado cada passo do tratamento em casa, a descrição e o modo de
usar cada medicação. Horários e dosagens eram comumente escritos pela equipe
nas embalagens e, às vezes, com canetas de cores diferentes, para distinguir
bem uma medicação de outra e sua função. Como as mulheres envolvidas neste
estudo não eram alfabetizadas, ao chegar em casa as prescrições eram mostradas a um homem alfabetizado e de parentesco
próximo. Como este estudo não evolveu acompanhamento domiciliar (apesar de dois
acampamentos terem sido visitados), não se sabe como é solucionada a questão
dos horários na rotina diária dos cuidados de saúde. Foi observado uma
desvinculação da relação cotidiana com o tempo. A noção de temporalidade mostrou-se
imprecisa ou percebida de forma distinta, se comparada co a nossa (não raro,
por exemplo, as mulheres nas conversas perguntavam “que dia da semana é hoje”
e, a partir da resposta, “quanto falta para a próxima consulta”, mesmo sabendo
elas o dia em que tal consulta estava marcada). Mas a informação que era
transmitida pela família fazia crer que seguiam com retidão tudo o que os
médicos prescreviam, incluindo horários para ministrar cada medicação. Ou pelo
menos deixavam transparecer um esforço neste sentido.
Na
grande maioria das vezes as acompanhantes ao longo das internações eram
mulheres. Nas internações pediátricas principalmente
a mãe, revezando com tias e avó. No caso de pacientes adultos a acompanhante
principal era a esposa. Ocasionalmente
acontecia de o pai de um paciente pediátrico também ficar como acompanhante,
mas por períodos mais curtos comparativamente ao das mulheres. Isto teve
repercussão nos rendimentos da família, uma vez que as mulheres, responsáveis
por boa parte da economia doméstica (pode acontecer até a mulher ser a
principal provedora de renda familiar), ficavam impossibilitadas de trabalhar.
Pode vir a ser um dos motivos para solicitações de alta.
Por
mais de uma ocasião aconteceu que nas internações prolongadas em tratamentos
longos, pacientes pediátricos foram deixados com uma acompanhante não cigana já
conhecida da família a fim de que a mãe e tias pudessem descansar e trabalhar.
Nestas situações observou-se um claro exemplo de mal-entendido
transcultural, onde a equipe de saúde preocupou-se com a possibilidade de as
crianças serem abandonadas no hospital, à parte da afetividade entre os membros
da família para com as crianças, talvez melhor percebida por quem tinha uma
relação mais próxima com o grupo. O fato de não haver ninguém da família como
acompanhante fixo por alguns dias, trouxe à tona a insegurança decorrente do
desconhecimento da outra cultura (muitas vezes baseada em estereótipos e
pré-conceitos, frutos da desinformação): o medo de que os ciganos poderiam se
desvincular afetivamente das crianças doentes e abandoná-las aos cuidados
exclusivos de conhecidos (não-ciganos) e do hospital.
Diante
de óbito eminente, procedimentos de risco sem resultados positivos garantidos
(e a garantia de possibilidade de sucesso demonstrou ser um fator bastante
relevante na tomada de decisão) ou tratamentos de apoio (se percebidos como
desconfortáveis ou perigosos) podem ser negados. Cabe aqui mencionar duas
citações julgadas bastante relevantes neste ponto: Fagan diz que “a deliberação nas tomadas
de decisões influenciadas por fatores como
cultura, etnicidade, religiosidade”(35) e
Vivian & Dundes apontam para a
relevância da “sensibilidade da equipe de
saúde para com crenças e tradições(...) fator crítico para o tratamento,
principalmente nos aspectos psicológicos e confiança”(29).
Foi
observado que certas decisões tomadas por familiares em momentos de pressão
psicológica, situações de ausência de perspectivas de cura ou melhoria, ou
ainda de óbito eminente, causou
mal-entendidos entre a equipe de
saúde e a família do paciente. Nestas situações, pode ser útil um interlocutor
para mediar o entendimento entre os dois grupos culturais envolvidos. Abreu
(p.47) mencionando a visão de Pierre
Bourdieu, Erhard Friedberg e Raymond Boudon sobre dinâmicas coletivas, refere
de forma muito própria, que “A noção que um indivíduo tem os seus
próprios objetivos(que devem ser respeitados), os quais nem sempre convergem com
os objetivos institucionais, é central nesta abordagem dos cuidados de saúde
numa ótica de respeito pela diversidade cultural”(33).
Meios
artificiais de sustentação de vida, uma vez não tendo o paciente mais esperança
de cura, não parecem ser aceitos. A eutanásia, ou algum procedimento que possa
ser entendido como tal, para favorecer a morte, é enfaticamente proibido. O
doente à beira da morte deve falecer “quando Deus assim quiser”. Há indicativos
da necessidade se manter acesas as luzes do quarto do paciente próximo à morte.
Esta tradição foi relatada por uma não-cigana muito próxima à família, acompanhante de um paciente pediátrico cuja
luz do quarto, mantida baixa pela equipe de enfermagem, era totalmente acesa
cada vez que um parente vinha visitar a criança. Este comportamento
aparentemente teria sido percebido como mais um elemento perturbador da ordem,
mas como não tinha maiores implicações não ocasionou maiores problemas.
Em caso
de óbito no hospital, não houve relatos e nem foi observado nenhum ritual ou
tratamento especial a ser dispensado. Houve
uma grande comoção familiar expressa em prantos e lamentos em voz alta, mesmo
diante de um desfecho eminente, já esperado há dias. Podem ocorrer reações
agressivas se a morte acontecer numa situação em que o vínculo de confiança
entre familiares e equipe de saúde tiver sido previamente rompido.
Para
paciente terminal que não esteja internado parece haver a preferência de que a
morte aconteça em casa, próximo aos familiares. A morte pode ocorrer na própria
tenda usada como residência habitual, contrariando os relatos encontrados em “Romani: customs and traditions” Ryczac et al
(5, 12), mas o leito de morte (colchões, cama, roupa de cama) devem ser
descartados.
Em
ambos os casos, parentes vieram de longe para se despedir, prestar as últimas
homenagens e dar apoio à família. No caso de pacientes internados, é uma
situação onde podem acontecer conflitos com as regras de visitas: foram
observados parentes recém chegados de viagem que quizeram imediatamente ver o
paciente e em número maior que o permitido dentro do quarto. Esta situação deve
ser contornada através de diálogo tranqüilo e explicações, sendo oferecida a
possibilidade de alternância dos visitantes no quarto.
Depois
de morto, o corpo não deve ser tocado a não ser para ser vestido. Necropsia não é aceita. O período de luto era
variável, de acordo com o arbítrio de cada parente. No luto, o indivíduo não
poderá ouvir música, assistir televisão, ir a festas, arrumar-se (aspectos
relacionados à vaidade como tingir cabelos, pintar as unhas, usar adornos),
entre outros. Por exemplo: Uma senhora, durante o luto pelo falecimento de seu
marido, ao visitar o quarto de um familiar internado, solicitou que a televisão
fosse desligada (no que foi atendida sem problemas).
No
extremo oposto, nascimentos são motivo de alegria, mas não foi observado um
grande número de familiares em visitas à maternidade durante o único nascimento
acompanhado no hospital (talvez pelo fato um familiar próximo estar internado
ao mesmo tempo). Nenhum ritual ou procedimento especial foi solicitado à equipe
de assistência e as mesmas precauções quanto às orientações dos medicamentos,
já mencionadas anteriormente, são solicitadas.
Não
foram observadas visitas de rotina para realização de pré-natal embora nós
fôssemos informados que elas eram realizadas “às vezes” fora do hospital.
Os
cuidados com os bebês, observados e mencionados, referiam-se à alimentação, a
evitar contágios de doenças de pessoas próximas (e do próprio hospital, onde
raramente crianças vinham em visita a parentes na pediatria) e evitar inveja (o
“mal-olhado”) de outras pessoas. A amamentação pode acontecer por período prolongado[8]
mas também pode ser negada se for percebida como oferecendo risco ao
recém-nascido (foi observado caso em que isto aconteceu por crença de que o
leite poderia transmitir ao bebê a mesma doença da irmã – câncer. Crença esta
que não desapareceu mesmo diante dos esclarecimentos médicos).
Achados Paralelos.
-
Todos os casos de ciganos atendidos no HCPA acompanhados neste
estudo foram casos de câncer, notadamente carcinoma colorretal, apontando para
um risco genético relatado na bibliografia. Alguns pesquisadores já encontraram alto índice de desordens
genéticas (20;21;36). Malformações congênitas entre ciganos
também são relatadas no RS por Locatelli (27). Kaladjieva, sugere que uma das
conclusões a que pode-se chegar a partir dos dados existentes, ainda que
incompletos, é que “o que pode parecer ser uma desordem confinada a uma
única família, pode ser uma indicação de um problema comum afetando um grande
número de indivíduos”(37). Muitos
trabalhos de genética de populações ciganas são encontrados em estudos fora do
nosso país. Morar
já havia apontado para sua importância:
“estas descobertas podem auxiliar o diagnóstico e fornecer orientações às
famílias afetadas”(38).
No HCPA, a possibilidade de
estudo genético da família com alta incidência de câncer, a fim de abrir para
um melhor conhecimento do caso e oferecer melhorias no aconselhamento,
diagnósticos e tratamentos no futuro, foi oferecida e a princípio recusada.
Mais tarde, mediante maiores esclarecimentos sobre o assunto e com auxílio de
interlocutor que tinha alguma intimidade com o grupo, parte da família aceitou.
As recusas persistentes foram baseadas em não querer mais “mexer com este
assunto” que já estava causando tanto sofrimento entre o grupo familiar. Outro
empecilho foi o fato de os estudos genéticos demandarem longo tempo para que sejam
conhecidos os primeiros resultados, e os familiares queriam respostas mais
imediatas, com resultados em curto prazo. Isto remonta ao fato de não haver
tradição de medicina preventiva.
- Saúde preventiva precária é
extensiva à saúde bucal, principalmente entre as crianças. A incidência de
cáries entre aquelas observadas era alta. Nos adultos era freqüente a ausência
de algum(s) dente(s) (exceção aos adultos jovens).
- Às crianças, quando em visita
ou internadas, eram dados muitos doces, refrigerantes, chicletes e afins. Mas
também foi observado o consumo de frutas (ainda que menos freqüente). Os pais, se questionados, relatavam que em
casa elas se alimentavam bem (feijão, arroz, carne). A alimentação é valorizada
e dão grande importância ao fato de uma criança estar comendo com regularidade
ou deixando de se alimentar (o que indica falta de saúde ou agravamento da
doença). Quando uma criança internada recebe alta a família é logo contatada
para que algo seja preparado para ela comer assim que chegue em casa.
- É comum que membros da
comunidade cigana, acompanhados neste estudo, fossem conhecidos por dois nomes
(ou um nome e um apelido), um dos quais é usado basicamente no seio da
comunidade e dado a conhecer a pessoas que tenham adquirido algum vínculo de
confiança com o grupo.
- Com relação à afetividade e
grau de parentesco, pode acontecer que uma familiar com grande vínculo afetivo
por uma criança (ex.: tia), apresente-se no hospital como mãe da criança em
questão. Recurso este que pode ser utilizado, num primeiro momento, para
acompanhar a paciente e obter notícias com maior facilidade, mesmo que a mãe
biológica esteja próxima.
Discussão e conclusões:
É óbvia
a falta de conhecimento que se tem da cultura dos grupos ciganos. A percepção
da população majoritária neste sentido é permeada com distorções e
preconceitos, vivências negativas e mitos. A visão etnocêntrica, que torna
fortalecidas as barreiras culturais dificultando o entendimento nas situações
de contato mistos, está presente em maior ou menor grau em todos que não fazem
parte de uma minoria étnica. Isto inclui os pesquisadores. Como bem reconhece
Bhopal em seu trabalho sobre etnicidade e racismo na área da saúde, “é preciso reconhecer a influência potencial
dos valores pessoais, incluindo etnocentrismo, dos pesquisadores”(39). Mas também envolve a equipe de
saúde e a possibilidade de isto influenciar em seus julgamentos. Para Dedier a “discriminação
é difícil de admitir e difícil de mudar” e a grande atitude que facilita
esta mudança é a tolerância. Acreditamos que, somado à tolerância deve haver o
conhecimento, entendimento e respeito pelas diferenças culturais existentes.
É
necessário ressaltar que existem diferenças culturais entre os distintos grupos
ciganos (Rom, Sinti e Calón) e, dentro destes grupos, uma heterogeneidade que
deve ser levada em consideração, tornando necessário deixarmos bem claro que os resultados não devem ser generalizados exceto
com grande cautela. Eles são sugestivos da possibilidade de que os mesmos fenômenos
podem estar presentes entre outras famílias ciganas além daquelas aqui
estudadas. Mas outros fatores (principalmente nível sócio-econômico, e também
grau de adesão às tradições culturais, por exemplo) devem ser levados em conta.
Notadamente
a família com que houve maior envolvimento apresenta um nível sócio-econômico
baixo, afetado ainda pelas constantes internações ao longo dos dois últimos
anos[9].
Isto somado ao baixo nível de escolaridade dos homens e não-alfabetização das
mulheres (responsáveis pelos cuidados de saúde dentro da comunidade) dificulta
o acesso às informações de saúde, inclusive quando provenientes da equipe
hospitalar. Também a situação econômica dificulta o acesso a serviços de saúde
particulares. A regra, dentro do grupo estudado, era procurar atendimento
através de postos de saúde locais do Sistema Único de Saúde que, por sua vez,
os encaminhavam ao hospital. Este fenômeno, somado às diferentes concepções de
saúde/doença já mencionadas[10]
pode ter influência na decisão de procurar atendimento apenas nos casos de emergência.
A
barreira lingüística, muito mencionada por autores que tratam de saúde de
minorias étnicas, não está presente neste caso. As fronteiras culturais entre
ciganos e não-ciganos, dentro do sistema de saúde, estão ligadas ao estilo de
vida distinto e a rejeição às normas compartilhadas pela maioria (incluindo as
de escolaridade).
Conclusões
semelhantes encontramos em trabalho realizado pela Rede Européia
Anti-Pobreza/Portugal (Porto,2003) – Saúde e Comunidades Ciganas (40).
A
principal reivindicação de todos os ciganos neste estudo foi por informações adequadas sobre a doença de
que eles ou seus familiares eram vítimas e sobre os tratamentos propostos.
Ressalta-se que a compreensão destas informações gera um vínculo de confiança a partir do qual aumenta-se a adesão ao
tratamento e minimizam-se os eventuais conflitos e mal entendidos entre eles e
a equipe de saúde. Através de diálogo adequado consegue-se também encorajá-los
à adesão às normas hospitalares.
A nossa
perspectiva é que os resultados obtidos neste primeiro estudo possam servir de
base para estudos futuros e que possam ser aplicados no planejamento de
assistência à saúde de pacientes ciganos.
[1]
Cabe aqui lembrar que, sendo as mulheres responsáveis pelos cuidados de saúde e
responsáveis também por boa parte dos rendimentos domésticos, as seguidas
internações onde participavam como acompanhantes ou fazendo visitas rotineiras
afetaram na economia da família. Algumas vezes acontecia de o pai de um
paciente pediátrico também ficar como acompanhante, mas por períodos
relativamente mais curtos que o das mulheres.
[1]
Como foi mencionado anteriormente, um indivíduo sem sintomas é considerado
saudável e não necessita de atendimento médico, o que vem a abolir a necessidade,
dentro desta linha de pensamento, de consultas periódicas de caráter
preventivo.
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J Hum Genet 2004 Oct;75(4):596-609.
(49) Bhopal R. "Is research into ethnicity and health racist,
unsound, or important science?",BMJ 1997 Jun 14;314(7096):1751-6.
(40)
Saúde e Comunidades Ciganas. Rede
Européia Anti-Pobreza/Portugal, Rede Sastipen. Porto, 2003
[1]
Bióloga; Núcleo
Interdisciplinar de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, 2006.
Email: delunares2003@yahoo.com.br Agradecimentos: Sara:
Cigana Rom que colaborou com este trabalho, exemplo importante da
possibilidade de entendimento transcultural, compartilhando experiências e
relatando aspectos da sua cultura. Através dos vínculos de confiança formados,
vários passos neste trabalho foram possíveis. Sua contribuição foi fundamental!
(Obs.: como é garantido anonimato aos sujeitos de pesquisa, omitimos o nome
completo, apesar de tal divulgação ter sido autorizada pela mesma). José
Roberto Goldim, Biólogo, doutor
em Medicina, responsável pelo Núcleo Interdisciplinar de Bioética do Hospital
de Clínicas de Porto Alegre: por ter acreditado neste trabalho e pela
orientação, principalmente nos problemas éticos que surgiram em momentos de
conflitos inter-culturais. Frans Moonen, Antropólogo
(professor aposentado da UFPB): pelo apoio, críticas, sugestões e
hospitalidade, colocando toda a bibliografia do Núcleo de Estudos Ciganos do
Recife a minha disposição e compartilhando toda sua experiência teórica e
prática com ciganos. Ana Cristina C.
Bittelbrunn, Médica Geneticista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre,
Mestre em Psicologia Social e da Personalidade: pela força, apoio e incentivo,
além do auxílio em pesquisa qualitativa.
[2]
Por exemplo: Um surto de catapora atingiu muitas crianças em Porto Alegre e
arredores na primavera de 2005. Muitos adultos jovens e crianças do acampamento
de uma das famílias foram contagiados e este contagio era atribuído ao “vento
da primavera que trazia a doença”.
[3]
Diante de 3 óbitos em 4 casos de câncer acompanhados dentro de uma família, a
cada óbito a possibilidade de tratamento oferecida aos demais foi sendo cada
vez mais questionada pelos ciganos e percebida como falsa, uma idéia enganosa
passada pelos médicos. A partir deste momento a confiança da família para com
diagnósticos e tratamentos oferecidos foi diminuindo e a tensão no diálogo
familiares/equipe de saúde aumentou.
[4]
O uso de chás medicinais era mencionado para pessoas que não estavam sob
acompanhamento médico, constituindo-se uma prática informal dentro da família.
Àqueles que estavam sob tratamento no hospital era dado somente, segundo relato
de familiares, a medicação prescrita pelo médico(a) responsável pelo caso.
[5]
Deve-se ressaltar que, quando neste estudo, um cigano(a) fazia referência a
costumes e tradições do seu povo, como neste caso, eles estavam referindo-se
aos ciganos Rom, que é o grupo ao qual pertenciam.
[6]
Depois que ela deu um exemplo pouco claro do que seria marimé (ex.: utensílios
de uso na cozinha – como panos de prato - não devem ser misturados durante a
lavagem com aqueles usados no corpo – como toalhas de banho) lhe foi relatado
exemplos de proibições encontradas nos livros, seguidas por ciganos Rom de
outros países. Muitas daquelas condutas eram classificadas por esta cigana como
“coisa dos antigos”, que não eram seguidas mais, como a separação do corpo pela
linha da cintura numa metade superior “pura” e inferior “impura”.
[7]
Aqui um agravante: além de “estar se sentindo bem” ser um sinônimo de saúde e
da não-necessidade de procurar um médico (mesmo diante das explicações sobre a
importância da prevenção) a família em questão encontrava-se emocionalmente
desgastada por longos tratamentos na oncologia pediátrica no HCPA e, depois de
alguns meses, alguns de seus membros queriam distância do hospital.
[8]
Luíza Silva, em seu trabalho sobre atitudes e comportamentos da saúde materna
em mulheres ciganas de Portugal, menciona que
“a amamentação é uma prática
largamente majoritária” e que
prolonga-se, de modo geral, enquanto a mãe tem leite (...) “sendo a criança iniciada à alimentação dos
adultos por sua própria vontade e por incitamento daqueles”(8).