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Contra o racismo e em defesa da ancestralidade africana no Brasil
Por Silvany Euclênio
No dia 21
de janeiro de 2000, morria a Iyálorisa Gildásia dos Santos e Santos,
vítima fatal da violência que incide sobre a ancestralidade africana no
Brasil. Sua foto foi utilizada pelo jornal “Folha Universal”, edição nº
39, para ilustrar matéria com o título
“Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”, cujo
conteúdo agredia violentamente as tradições de matriz africana,
malevolamente mistificadas com práticas charlatãs. Com o choque, ela,
que era hipertensa, sofreu um ataque cardíaco e faleceu.
Em uma
justa homenagem a mais esta vítima do racismo, o ex-presidente Lula
instituiu o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, com a
aprovação da Lei nº 11.635/2007. Este ano, como vem acontecendo desde
então, haverá por todo o país manifestações de repúdio às ações de desrespeito às práticas tradicionais africanas.
"Essas
tradições passaram a ser vilipendiadas desde que aqui aportaram os
primeiros africanos, como mão de obra compulsória para o hediondo
sistema escravista"
No entanto, a palavra intolerância, embora amplamente utilizada a partir da Conferência de Durban (I Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, ocorrida em 2001, em Durban, África do Sul) não dá conta da real dimensão da violência que incide cotidianamente sobre as tradições das matrizes africanas preservadas no Brasil e da qual o caso de Gildásia dos Santos e Santos se tornou referência.
No entanto, a palavra intolerância, embora amplamente utilizada a partir da Conferência de Durban (I Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, ocorrida em 2001, em Durban, África do Sul) não dá conta da real dimensão da violência que incide cotidianamente sobre as tradições das matrizes africanas preservadas no Brasil e da qual o caso de Gildásia dos Santos e Santos se tornou referência.
Essas tradições passaram a ser vilipendiadas desde que aqui aportaram
os primeiros africanos, como mão de obra compulsória para o hediondo
sistema escravista. Portanto, tolerância não é exatamente o que
resolverá este estado de denegação e reificação que recai sobre a
população negra no Brasil e que se constitui como a faceta
mais atroz do racismo, cuja sustentação está exatamente na valoração
negativa da história, da cultura, do modo de ser e viver do grupo
oprimido, negando a sua própria humanidade, posto que produzir cultura é
um predicado essencialmente “humano”.
Resistência
Mas o povo
negro resistiu e, a despeito de toda a ferocidade, criou os territórios
tradicionais de matriz africana, espaços de afirmação da identidade e
subjetividade histórica e cultural, na luta para sobreviver num ambiente
de iniquidades e opressão racial.
Nesses
locais foram preservados valores civilizatórios, idiomas, indumentárias,
práticas alimentares e de relação com o sagrado, com o meio ambiente e
com a sociedade do entorno, garantindo a preservação de um modo de viver
marcado pelo acolhimento e pela solidariedade.
Racismo e Dominação
Sem a sua
existência a população negra brasileira poderia ter sucumbido aos
efeitos do racismo e de suas estratégias de dominação ao longo dos
séculos, como o projeto de branqueamento encetado no país a partir
da segunda metade do século 19. Assim como as muitas iniciativas de
“modernização” e higienização étnica implementadas nos centros urbanos
no início do século 20.
"É nesse patamar que são gerados os ataques violentos a símbolos, pessoas e casas, identificadas por extremistas como demoníacas, em referência a um ser maléfico inexistente nas tradições africanas"
Ou ainda, o mito da democracia racial e o processo de invisibilização da população negra; o avanço da especulação imobiliária sobre os territórios tradicionais; o vilipêndio cotidiano em diversos veículos de comunicação; dentre outras tentativas de aniquilação.
Ou ainda, o mito da democracia racial e o processo de invisibilização da população negra; o avanço da especulação imobiliária sobre os territórios tradicionais; o vilipêndio cotidiano em diversos veículos de comunicação; dentre outras tentativas de aniquilação.
Esta
insistência em continuar existindo, com relação à identidade e à
subjetividade, resulta no aprofundamento da injúria, chegando ao ponto em
que um toque de tambor, o uso de um Ileké (colar de conta) ou de um
gele alarambara (torço colorido), a simples pronúncia de uma frase em
yoruba, quimbundo, quicongo ou fon (idiomas africanos preservados no
Brasil), remetem imediatamente ao imaginário racista brasileiro.
Ataques
É nesse
patamar que são gerados os ataques violentos a símbolos, pessoas e
casas, identificadas por extremistas como demoníacas, em referência a um
ser maléfico inexistente nas tradições africanas. Como exemplos mais
emblemáticos,
lembramos o que ocorreu em Alagoas (fevereiro de 1912) e ficou conhecido
como “Quebra de Xangô”. Na época, lideranças foram espancadas e mortas,
casas foram depredadas e incendiadas, em uma ação liderada por
políticos e veteranos de guerra e, incitada pela imprensa.
Um século
depois, em julho de 2012, o assassinato de uma criança em Pernambuco foi
perversamente relacionada às tradições de matriz africana, hipótese
veiculada com insistência pela mídia impressa, falada, televisiva e
virtual, provocando ataques a lideranças e territórios tradicionais, bem como a depredação de diversas casas.
A mesma
estereotipia é remetida às características fenotípicas da população
africana e sua descendência diaspórica, de maneira que, mesmo as pessoas
negras que adotam
outras práticas e modos de viver, despindo-se dos símbolos mais
aparentes desta africanidade, continuam relegadas a uma subcidadania, a
um lugar reservado para os considerados “não humanos” na hierarquia
estabelecida pelo racismo brasileiro.
Dia Nacional
Portanto,
no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, pensemos mais
amplamente: Contra o racismo e em defesa da ancestralidade africana no
Brasil, já que o enfrentamento ao racismo passa necessariamente pelo
combate à violência contra a ancestralidade africana, e vice-versa.
É
necessário promover o reconhecimento das tradições de matriz africana
como uma das formadoras da riqueza cultural material e imaterial do
Brasil, garantindo o direito constitucional das pessoas vivenciarem
livremente a sua
cultura. Afinal, como disse Mestre Tolomi, “a ancestralidade é a nossa
via de identidade histórica. Sem ela não sabemos quem somos, e nem o que
pretendemos ser”.
♦ Silvany Euclênio é secretária de Políticas das Comunidades Tradicionais da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir)
Profª Silvany Euclênio
Secretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
Presidência da República